Mesmo sabendo que eu colocaria em risco essas coisas que faço e me soam  tão bem. O Pilates, por exemplo, que faço às terças e quintas duas horas  após almoçar na minha mãe. Isso me parece um pedaço agradável de uma  agenda encantada, dias felizes, nada demais. A aula de dança das  segundas e quartas, a acupuntura da sexta, a análise quinta cedinho, o  parque do sábado a hora que der na telha, o japonês com a Letícia, meu  emprego na televisão e na editora que me permitem mandar em boa parte do  meu tempo sem ser, por isso, uma louca duranga, o costume de escrever  até tarde ouvindo Beck ou Antony and the Johnsons, os mocinhos que  aparecem, com intervalos de dez ou vinte dias, e me abastecem de um  gostar possível e descartável, algum bar chato que serve pra me tirar de  casa e até mesmo rir de um ou outro ser humano mais parecido com o que  eu acho que deveria ser um ser humano. Nada disso me soa banal e aprendi  mesmo a chamar de minha vida. Agora serão dias achando tudo idiota e  até mesmo medíocre. O Pilates, os almoços em família, os bares, tudo uma  tortura. Ainda assim, mesmo sabendo que depois é cheia de dor que  carrego minhas horas, ainda assim eu cortei o cabelo um dia antes e  comprei uma jaquetinha preta em promoção. Ainda que sentir de verdade  pareça uma outra vida, às vezes cansa viver dentro das coisas que  invento. Com você, mesmo eu inventando tudo também, dá pra ter essa  sensação de desordem, atropelamento, vida dizendo e não minha cabeça  falastrona. Mesmo sendo ofensivo pra minha existência que pessoas como  você existam. Mesmo que sua tristeza e preguiça e desistência mostrem  pra minha frescura de sentidos como tudo pode ser amargo e pior: mostre  que tudo sempre foi e eu é que, vai ver, sou forte ou abençoada demais  pra não sucumbir. Mesmo que sua alegria nunca seja por mim. E que sua  alegria torne, quando por mim, minha vida intolerável. Sua existência é  um absurdo e isso é a maior verdade que me vem à mente quando penso em  você ou estou ao seu lado.  
Passamos a tarde juntos. Foi leve e eu estava quieta, coisa que  nunca aconteceu nenhuma das vezes que saímos. Eu estava sempre histérica  e hoje eu estava muito quieta, até demais. Talvez seja porque eu não  tenho mais a euforia louca de ser amada. Eu piro quando alguém me ama e  ao ver em você a calmaria dos vencedores corriqueiros, larguei o corpo.  Acabou sendo boa, a sensação de tarde ordinária, encontro ordinário. Eu  pude habitar o papel de amiga caminhando ao lado, uma forma de ouvir por  perto sua respiração pigarrenta que amo como se fosse o único sopro  saudável do mundo. Eu permaneci e isso foi diferente, triste,  insuportável, mas possível. Como os mortos que ficam em qualquer lugar,  até mesmo embaixo da terra. Morto não deseja e por isso mesmo permanece.  Acho que seu desejo morreu e talvez o meu também, já que boa parte  desse amor enorme que eu sentia e sinto por você, vinha e venha da minha  alegria desmesurada em me sentir amada pelos meus próprios sonhos. Você  encerrava em mim eu mesma e era uma loucura tudo, como eu sentia, como  eu queria me vomitar e ensanguentar e explodir e rodopiar em mim até  furar o chão como uma broca desgovernada e depois sair derrubando o  mundo como o único pião que sabe a verdade e precisa chacoalhar seu  entorno pra não enlouquecer sozinho. Era uma loucura tudo. Mas a morte, o  fim, nós, andando calmos, ao lado um do outro, isso me permitiu estar  de alguma forma sem querer habitar cada instante do estar e para isso me  retirando o tempo todo. E isso pode ser viver mas viver é terrível. E  antes, quando eu não sabia viver e me sentia amada, era ainda mais  terrível. Daí que sobra essa sensação de uma solidão filha da puta mil  vezes pois em nada dá pra ser com você. E tudo bem, não é você, nunca  foi, mas escuta a maluquice: é que nada disso impede que eu sinta um  amor absurdo por você. 
Me peguei uma hora, olhando você, andar, tão feinho, seu ombro  encolheu um pouco, cada dia que passa mais e mais é uma concha o que  você se torna. Dessas que é mentira a pérola e o som do mar, mas eu os  vejo, o tempo todo. Você andando desse seu jeito meio de louco, que  chacoalha a cabeça. E se veste mal quando pouco se importa, eu sei, eu  entendi. E a manga suja de café. A roupa bege da cor de tudo que é você.  Você é tão errado e cheio de estragos. E me peguei olhando pra tudo  isso e amando tanto, tanto, tanto. Como se nada mais no mundo fosse tão  bonito ou correto ou mesmo perfeito porque perfeito é o que não tem  mesmo cabimento. O resto nem existe porque vemos ou explicamos.  
Na sua varanda sem céu, certa vez, você se sentou naquela cadeira  sem fundo. Me colocou no seu colo e me deu o abraço que disparava  corações em mim como se eu tivesse um em cada nó de veia. E me disse,  com sua voz tão bonita, a mais bonita que eu já ouvi, que eu tinha  subido todos os seus andares. Eu entendi que você era o homem da  cobertura de aço e eu uma espécie rara de passarinho que tinha algum  tipo de chave que se autodestruiria em poucos segundos. E eu entendi  também que agora que tinha chegado ali, só me restava pular, já que  ninguém aguenta o alto tão alto muito tempo. A vertigem que era o nosso  amor. Minhas olheiras, meu cansaço, meus quarenta e dois quilos. Eu  poderia morrer porque você tinha uma carninha mais mole atrás da sua  orelha direita e isso me impossibilitava, dia após dia, que eu vivesse  sem sentir você o tempo todo. Mas quem é mesmo que morre dessas coisas?  Não, não podemos, com tanta coisa pra fazer, os meninos de dez a vinte  dias, os bares, e almoços, o Pilates, a dança, os empregos, escrever,  tudo isso que é minha vida antes e depois de você. Tudo isso que daqui a  pouco, quando a sensação desgraçada de absurdo e solidão passar, tudo  isso volta, se acomoda, a agenda mágica, o gostosinho no peito, esquecer  você todo dia um pouco pra vida e todo dia muito pro dia. Mas agora,  hoje, guarda isso, eu amo demais você. Por que escrevo? Porque é a minha  vingança contra todas as palavras e sensações que morrem todos os dias  mostrando pra gente que nada vale de nada. Toma esse texto, o único  lugar seguro e eterno pra gente.
Tati B.
 
 
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